Hidrogênio vindo do etanol é realmente verde e sustentável?

(Texto de Antonio Camargo da Right Energy, publicado pelo GESEL da UFRJ, IE em 18.11.2021)

O hidrogênio é o elemento mais leve e abundante do universo visível. Na terra ele praticamente não existe em sua forma pura nas condições normais de temperatura e pressão: o gás H2. Assim mesmo o H é amplamente disponível na biosfera já que ele está na H2O (água), na biomassa (C 48%; H 6%; O 45%), no gás natural (CH4), no petróleo CXHY etc.

O hidrogênio é uma substância de contrastes

Sendo o menor átomo, sua molécula é muito pequena e leve (1/14 da densidade do ar) e seu armazenamento como gás para uso veicular precisa ser feito com pressão entre 700 bar e 800 bar, condição em que terá alguma chance de vazar. Como o H2 ao ar livre queima a 2000°C em chama invisível, imagine um acidente com veículo movido a hidrogênio dentro de um túnel? Ou mesmo um vazamento em garagem mal ventilada? A tecnologia resolverá isto, mas sua adoção não será trivial.

Densidade energética é o maior desafio ao uso do hidrogênio

Nada tem mais energia por unidade de massa que hidrogênio: ao redor de 120 MJ/kg, contra 44 MJ/kg para a gasolina e 47 MJ/kg para gás natural (PCI). Por outro lado, a densidade energética do hidrogênio base é baixíssima sob qualquer métrica: como gás são 10,8 MJ/Nm3 contra 36,6 MJ/Nm3 para o gás natural. Já para o H2 líquido são 8,5 MJ/litro contra os 32,34 MJ/litro da gasolina e 35,8 MJ/litro para o diesel e para o QAV (querosene de aviação). O litro do hidrogênio líquido (-253°C) tem 23,7% da energia do litro do QAV, mostrando o enorme desafio, por exemplo, em usá-lo para descarbonizar a aviação de média e longa distância. Todos os valores PCI.

1) O BioEtanol como fonte de H2V via reforma catalítica com vapor d’água

Embora o bioetanol tenha algumas vantagens como veículo para armazenar e transportar hidrogênio verde – não é tóxico, é líquido à temperatura ambiente e já possui infraestrutura para produção e distribuição em larga escala nos EUA, Brasil, Índia e outros locais – apenas 13,04% da sua massa é hidrogênio contra 17,65% na amônia e 25% no biometano.

Provavelmente o método mais adequado para a produção de H2 a partir de 1 litro de bioetanol seja sua reforma catalítica na presença de vapor d’água realizada a temperaturas entre 500°C e 780°C. Esta reação que demanda adição de energia externa pode ser resumida pela fórmula C2H5OH + 3H2O >< 2 CO2 + 6H2. Não é objetivo aqui discutir esta reação que depende de muitas alternativas de catalisadores, tipos de reator e temperatura em que ocorre. Mas não estamos longe da realidade se afirmarmos que de um kg de etanol – que contém 130,43 g de hidrogênio – deverá ser produzido de fato, através deste processo, ao redor de 86,95 g de hidrogênio com taxa de conversão na faixa de 60% a 67%.

Ou seja, em média quatro átomos de hidrogênio dos seis disponíveis na molécula do etanol devem ser extraídos. Há, no entanto, necessidade de se testar estas taxas de conversão em sistemas com escala industrial. Só assim conheceremos a realidade e eficiência desta tecnologia. Crucial lembrar aqui que cana de açúcar é um painel solar natural que energiza o processo de fotossíntese que depende ainda de nutrientes e muita água. A atratividade do etanol como via para o H2V dependerá muito do seu rastro ambiental. Plantas C4, adaptadas a temperaturas elevadas, alta absorção de CO2 e menos perda de água, como a cana, milho e capim elefante, transformam luz em biomassa acima do solo com alta eficiência, entre 0,85% e 0,95%. No caso da cana em média 0,94% da energia na luz solar termina armazenada na biomassa acima do solo. Açúcares são 1/3 da biomassa seca da cana e apenas uns 0,21% da luz solar vira etanol de fato.

A produtividade do H2V quando feito a partir do etanol de cana do Brasil.

Segundo planilha da CONAB da safra 2019/2020, o estado de SP produziu 16.489 bilhões de litros de etanol a partir de 2,555 milhões de hectares, resultando numa produtividade de 6.453 L etanol/ha-ano. Este volume de etanol à densidade média de 0,803 kg/L no mix de produção entre hidratado e anidro (2:1) resulta numa produção em massa de 5.182 kg etanol/ha-ano. Como o hidrogênio responde por 13,04% da massa do etanol, então temos 675,9 kg de H2/ha-ano embarcados nas moléculas do etanol produzido. Através da reforma catalítica a vapor espera-se extrair e armazenar em média 65% do hidrogênio do etanol, resultando em 440 kg de H2/ha-ano por esta via.

2) A produção de H2V a partir de eletrólise de água movida por eletricidade solar FV

O índice de radiação solar no interior do estado de SP (GHI1), em áreas onde os canaviais predominam – latitudes iguais ou menores que de cidades como Sertãozinho e Ribeirão Preto – gira em torno de 5.400 Wh/m2-dia. Esta radiação e abundância de água fazem de boa parte do estado de São Paulo o maior produtor de cana do Brasil.

Uma usina solar fotovoltaica com potência total de painéis fixos de 1000 kWp (corrente contínua), construída em 1 hectare na região de Sertãozinho, SP, produzirá por volta de 1.580 MWh/ano de energia elétrica.

Como referência usamos o sistema para eletrólise de água Silyzer 300 da Siemens – que pode produzir até 2000 kg de H2/hora – com eficiência declarada pela empresa acima de 70% baseado no PCS do Hidrogênio. Partindo desta premissa o hectare com sistema fotovoltaico de 1 MWp é capaz de produzir em média 1.422 MWhe/ano ao longo dos 25 anos de vida da usina solar. Aplicando eficiência de 70% teremos 995,4 MWhe equivalentes a 3,583 milhões de MJ = 29.700 kg de H2/ha-ano.

(1) Global Horizontal Irradiance

Veredito:

440 kg/ha-ano de H2V via etanol versus 29.700 kg/ha-ano via eletrólise com solar FV

Agora, quão verde de fato será o “HIDROGÊNIO VERDE”?

De Etanol

Em fevereiro de 2010 a EPA (Environmental Protection Agency) dos EUA publicou uma revisão importante do seu RFS (Renewable Fuel Standard), chamado de RFS-2, que talvez ainda seja o mais completo estudo sobre o ciclo de vida do etanol brasileiro.

Nele a ACV (análise do ciclo de vida) do etanol no Brasil produzido apenas pela fermentação dos açúcares (sem produção de etanol celulósico adicional a partir da palha da cana) sofreu importante alteração para melhor. O estudo indicou que a redução real de emissões (kg CO2e) do nosso etanol frente às emissões do ciclo de vida da gasolina padrão americana de 2005, seria de 61% e não dos 44% da avaliação inicial de 2008, contestada pelos brasileiros do setor e pela Embrapa. A nova leitura fez nosso etanol ser classificado pela EPA como “Advanced Renewable Fuel”, aquele que reduz em mais de 50% as emissões frente à gasolina, índice que o etanol de milho não atinge. Os 61% renováveis do etanol do Brasil estão perto do topo da cena mundial de biocombustíveis, perdendo apenas para óleo vegetal usado e gordura animal. Mas os 61% relembram também que não há energia 100% renovável por qualquer via.

Sabemos que 1 hectare de cana que produz em média 5.180 kg de etanol por ano que resultará em 440 kg de H2. O carbono contido neste etanol produzirá 9.909 kg de CO2 dos quais 39% não-renováveis, ou seja, 3.864 kgCO2/ano.

Para o etanol teremos emissões que somam 3.865/440: 8,78 kgCO2/kg de H2

De Sistema Solar Fotovoltaico

Uma análise do ciclo de vida (ACV) de painéis solares de alta eficiência SunPower (20,1%), foi desenvolvida por time do Brookhaven National Laboratory do DOE dos EUA, pelo Center for Life Cycle Analysis da Columbia University e pela SunPower, fabricante dos painéis estudados.

Em termos gerais a ACV na modalidade “do berço ao túmulo”, considerou a energia primária usada em todas as fases da produção nas Filipinas – das minas ao descomissionamento – de 248.652 painéis fotovoltaicos de 1,62 m2 e 327 Wp (c.c.). A matriz energética nas Filipinas na época do estudo – representativa da Ásia – era formada por carvão (25,9%); óleo (8,0%); gás (32,2%); hidro (16,2%) e geotérmica (17,7%), que resultou no total de 281 kgCO2e/m2 de painel fabricado. Segundo o estudo o painel da SunPower devolve a energia usada em sua fabricação nas Filipinas em 1,4 ano. Considerando os 1000 kWp da usina solar em Sertãozinho no estado de SP e supondo que ela use o painel SunPower (20,1%), chegamos ao total de 3.058 painéis de 327 Wp e 4.954 m2 de área total de painel, resultando em 1,392 milhão de kgCO2e emitidos na sua fabricação. O correto é distribuir as emissões totais ao longo dos 25 anos de operação da usina solar, o que resulta na média de 55.680 kCO2/ano para a produção média de 29.700.000 kg/ano de H2 ao longo de 25 anos. Bom lembrar que a produção de eletricidade solar da usina cai 0,5% ao ano entre o 1º ano de operação e o 25º ano final.

Para a FV resulta em 55.680 kCO2e-ano/29.700 kg H2 = 1,87 kgCO2e/kg de H2.

CONCLUSÃO

Dois processos distintos – de um lado a reforma catalítica com vapor do etanol de cana obtido via fermentação e do outro a hidrólise de água a partir de eletricidade solar fotovoltaica – ambos operando a partir da mesma fonte de energia primária – os 1.972 kWh/m2-ano (5400 Wh/m2-dia) fornecidos pelo sol – produzem resultados muito diferentes na hora de produzir H2. Do ponto de vista do uso da terra, usar solar fotovoltaica ao invés de etanol para a produção de H2 verde reduz o impacto ambiental em termos de mudança do uso do solo em mais de 67X! Porque esta é a redução de área que a via fotovoltaica permite em relação ao etanol de cana para atingir a mesma produção de H2 verde. Estes números podem ser vistos na tabela a seguir.

Em termos de emissões há uma vantagem também da FV, mas esta diferença deve ser olhada com cautela porque só o impacto da fabricação dos painéis foi considerado no caso do H2 solar, ao passo que o estudo da EPA para emissões resultantes do nosso etanol leva em consideração outros elos da cadeia de recursos usados na sua produção.

No fim do dia as diferenças de emissões por hectare-ano perdem importância perto da enorme diferença da área agricultável necessária para produzir a mesma quantidade de H2V via etanol e via hidrólise da água por energia elétrica fotovoltaica. A razão é a baixa taxa de conversão de energia solar para etanol comparada com a taxa de conversão de energia solar em eletricidade, duas formas de uso final de energia: 1:37!

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